image_pdfimage_print

 

“Quem deve morrer?”. Essa pergunta pode parecer estranha, afinal, se há uma certeza na vida é a de que ela é passageira e seu término se dará com a morte. A maior lógica existencial é essa, se nasceu, um dia morrerá. Contudo, todos (ou quase todos) desejam uma vida longa (o mais longa possível) e feliz, e é neste ponto que reside a minha inquietação, pois, vida longa é sinal de saúde.

O debate em torno deste tema se acalora cada dia mais. Quanto mais discute-se o acesso a determinados serviços em saúde, mais a discussão aumenta e se aprofunda.

Na família, na igreja, na escola, na faculdade de direito, em todo lugar ensina-se algo que deve ser levado para todos os lugares: o direito à vida é o mais importante.

Partindo dessa premissa, o constituinte de 88 de forma ousada e brilhante insculpiu no art. 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Neste panorama, a garantia à saúde não pode encontrar quaisquer obstáculos à sua efetivação. Garantir esse direito a todos, significa dizer que quaisquer pessoas, impendentemente de raça, credo, condição financeira, ou qualquer outra hipótese discriminatória, poderão e deverão ser atendidos em suas necessidades atinentes a essa área de atuação estatal.

No Brasil essas ações e serviços públicos se desenvolvem no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo planejamento, execução e controle dessas políticas. Tal sistema é descentralizado e possui direção única em cada esfera de governo: municipal, estadual e federal.

A abrangência das ações do SUS é tão grande, que no Brasil é simplesmente impossível alguém declarar que não utiliza os serviços por ele prestados. Destaque-se alguns exemplos, quando se adquire produtos em uma farmácia, o SUS está presente desde a liberação da fabricação e distribuição do medicamento, através da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), até a autorização para funcionamento, que deve passar necessariamente pelo crivo da vigilância sanitária municipal; as vacinas distribuídas gratuitamente no Brasil; o programa de vacinação animal (cachorros e gatos); o serviço de atendimento de urgência e emergência (conhecido como SAMU); estratégia saúda da família; hospitais de pequeno, médio e grande porte; entre outros.

As leis 8080 e 8142/1990 estão entre os principais instrumentos normativos do SUS. A primeira dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e a segunda sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.

Os recursos necessários ao financiamento das atividades do SUS são oriundos dos cofres públicos. União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem, por força constitucional (EC 29/2000 e 86/2015), destinar percentual mínimo de seus respectivos orçamentos para cobertura das ações.

Dentre as atividades executadas pelo SUS no firme objetivo de garantir saúde à população está a política pública de distribuição de medicamentos.

É de conhecimento notório que os medicamentos são drogas utilizadas para o tratamento das mais diversas doenças. Num conceito mais técnico são produtos especiais elaborados com a finalidade de diagnosticar, prevenir, curar doenças ou aliviar seus sintomas, sendo produzidos com rigoroso controle técnico para atender às especificações determinadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA[1].

O Estado deve ofertar, conforme aludido anteriormente, saúde integral à população, o que significa que o acesso aos medicamentos necessários ao tratamento das enfermidades que eventualmente lhe acometa é direito do cidadão.

Apesar de toda essa garantia de acesso, o que se vê é a proliferação de ações judiciais em que se discute o acesso a medicamentos cujo fornecimento foi negado pelos diversos entes federados.

Várias são as justificativas invocadas para que o medicamento prescrito pelo profissional médico não seja entregue ao cidadão que dele necessita. Em muitos casos a discussão é acerca de qual ente seria o responsável pela entrega daquele medicamento específico; em outros o medicamento não consta da relação de medicamentos municipal, estadual ou nacional; há ainda casos de medicamentos ainda não aprovados pela ANVISA; entre outros.

Com o “não” do Estado-Executivo, resta ao cidadão se valer do Estado-Judiciário para ter o seu direito satisfeito. Este fenômeno é mais conhecido por judicialização da saúde, que envolve não só a entrega de medicamentos, mas também, a realização de cirurgias, a busca por vagas em leitos hospitalares, até mesmo a realização de simples consultas especializadas, entre outros.

A partir da decisão judicial municípios, estados e União se veem na obrigatoriedade de entregar os medicamentos. Na maioria das vezes esse encargo recai sobre o município, afinal, é o ente mais próximo da população.

Esta discussão tem ganhado maiores contornos com os debates acerca dos recursos extraordinários 566471 e 657718 que tramitam no STF. Os recursos, que tiveram repercussão geral reconhecida, tratam do fornecimento de remédios de alto custo não disponíveis na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) e de medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O mérito da questão gira em torno da obrigatoriedade de o Estado fornecer medicamento de alto custo não previsto na lista que é elaborada pelo SUS. No âmbito nacional essa lista é chamada de RENAME – Relação Nacional de Medicamentos. E de outro lado, se o Estado deve ofertar mesmo aquele medicamento que ainda não passou pelos rígidos critérios de análise da ANVISA.

Com relação ao primeiro ponto, data maxima venia, trata-se de discussão sem sentido. Afinal, o fato de existir uma lista de medicamentos elaborada pelo SUS, não significa que todas as possibilidades estão ali contempladas. Afinal, todos os dias novos estudos são desenvolvidos, novos medicamentos são criados para combater os mais diversos males que acometem a humanidade.

Não é plausível estabelecer como critério para o fornecimento de medicamento uma lista elaborada por órgão público. Noutro norte, o fato de o medicamento ter um alto custo, de igual forma, não é critério balizado pela Constituição ou qualquer outra norma.

Em uma análise coberta de um racionalismo prático e desumano poderia se aferir que o que se gasta com o medicamento para salvar a vida de uma única pessoa, daria para adquirir medicamentos para o tratamento de milhares de outras pessoas. Neste caso, como aferir quem deve ser salvo?

A Constituição Federal de 88 ao estabelecer o direito fundamental à saúde não o fez de maneira condicionada, a resposta à questão posta é simples, atendimento integral e universal. O que o dispositivo constitucional já impõe com muita propriedade.

O embate judicial deve se pautar em torno de quem “pagará a conta” e não em torno do acesso ao medicamento. É claro que devem ser estabelecidos requisitos mínimos para o acesso a este tipo de medicamento para que haja a comprovação de sua eficácia e imprescindibilidade.

Negar o acesso a medicamento que comprovadamente seja capaz de garantir a vida de uma pessoa acometida por doença grave ou rara, por mais caro que seja, ainda que não esteja na lista “x” ou “y”, pode significar o encurtamento de uma vida longa e feliz.

Grande abraço a todos.

 

[1] http://www.cvs.saude.sp.gov.br/apresentacao.asp?te_codigo=2

Deixe uma resposta