Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o preso submetido a situação degradante e a superlotação na prisão tem direito a indenização do Estado por danos morais.
A decisão se deu em sede de Recurso Extraordinário manejado pela Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul. A tese fixada pelo STF foi a seguinte:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento
Os ministros do Supremo decidiram pela concessão de indenização ao apenado como forma ressarci-lo pelos danos morais experimentados.
Após esta paradigmática decisão do STF milhares de ações com pedido similar serão propostas em todo o país, devido ao atual quadro das instituições prisionais. A maioria delas não são capazes de ofertar tratamento digno aos condenados.
O Estado pagará pela sua ineficiência na condução de políticas públicas adequadas para o enfrentamento do caos que se instalou no sistema prisional.
Indenização à vítima (aspectos jurídicos)
Recentemente publiquei um artigo com o título “Bandido bom é bandido morto” (se você não leu, clique aqui – vale a pena conferir) no blog e recebi muitos feedbacks. A maioria deles se reportavam ao descaso do Estado e da sociedade em geral com relação à vítima, sobretudo no tocante à indenização.
Isto moveu-me a escrever esse artigo para falar um pouco sobre a figura da vítima.
A vítima não foi abandonada ou esquecida pelo ordenamento jurídico, como querem fazer crer diversos críticos da decisão do STF supramencionada.
Na verdade, as modificações introduzidas, sobretudo em 2008, no Código de Processo Penal (CPP) visaram, nas palavras de Távora (2010), retirar da vítima o título de “ilustre esquecida”.
Exemplo dessas mudanças, foi a redação do art. 387, inciso IV do CPP, alterado pela lei 11.719/2008:
Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:
(…)
IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido;
Assim, o juiz ao condenar o acusado por crime, deverá fixar na própria sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados à vítima. Esta sentença possui natureza de título executivo judicial, conforme art. 515, inciso VI do Código de Processo Civil (CPC).
Claro que existem consequências do crime que são irreparáveis do ponto de vista financeiro. Contudo, as disposições do CPP e CPC visam atenuar o sofrimento das vítimas e seus parentes já que o valor a ser fixado para indenização se refere a danos materiais e também morais.
Nesta senda, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou em 2009, o Manual Prático de Rotinas das Varas Criminais e de Execução Penal, onde estabeleceu o seguinte:
Ressarcimento de danos como efeito da sentença condenatória:
De acordo com a modificação introduzida no CPP, o ressarcimento de danos:
a) passou a ser elemento obrigatório da sentença mediante a fixação de valor mínimo para a indenização, quando houver dano para a vítima;
b) no regime atual, omissa a sentença, é cabível opor embargos de declaração.
c) não distingue entre dano material ou moral;
d) não exige pedido expresso na ação penal;
e) aplica-se aos fatos ocorridos anteriormente à vigência da nova redação do CP;
f) não pode ser determinado quando a absolvição criminal se fundar no art. 386, incisos I, IV e VI, do CP;
g) não pode ser determinado, quando a sentença for absolutória.
Segundo a orientação do CNJ, ora em destaque, independentemente de ter o representante do Ministério Público realizado pedido para fixação do valor para ressarcimento dos danos, o magistrado teria a obrigação de enfrentar tal questão. Fixando-se na sentença o valor mínimo para indenização à vítima.
Contudo, a jurisprudência consolidou-se em outra linha. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento no sentido de que há a necessidade de pedido expresso realizado pelo Ministério Público para determinação do quantum indenizatório.
O informativo do STJ n. 0528 traz em destaque tal questão:
Para que seja fixado na sentença valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, com base no art. 387, IV, do CPP, é necessário pedido expresso do ofendido ou do Ministério Público e a concessão de oportunidade de exercício do contraditório pelo réu. Precedentes citados: REsp 1.248.490-RS, Quinta Turma, DJe 21/5/2012; e Resp 1.185.542-RS, Quinta Turma, DJe de 16/5/2011. REsp 1.193.083-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 20/08/2013, DJe 27/8/2013.
Não é outra a linha seguida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, destaco trecho de recente decisão[1]:
-A fixação do valor reparatório, na esfera penal, poderá ocorrer somente quando houver pedido expresso, quer do representante do Ministério Público ou de eventual assistente de acusação, oportunizando-se, assim, a produção de prova em sentido contrário e, com isso, o regular exercício do contraditório, além de ser necessário existir nos autos elementos balizadores do valor do dano sofrido.
-Ausentes parâmetros mínimos para demonstrar e valorar o prejuízo suportado pelas vítimas e a reparação justa, não estão atendidos os requisitos que possibilitam a indenização material mínima prevista no art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal.
-É cabível o arbitramento de honorários advocatícios ao defensor dativo em razão de sua atuação nesta instância revisora.
A jurisprudência, como visto, se curva à necessidade de se estabelecer o contraditório e a ampla defesa, garantias constitucionais, para determinação da valor mínimo de indenização à vítima e/ou aos seus parentes.
Não havendo pedido expresso, nem elementos suficientes para sua determinação, não há nulidade na sentença prolatada sem a determinação desses valores.
O que é ação civil ex delicto?
A vítima, caso tenha sofrido dano passível de indenização, deverá pleitear junto ao juízo cível a devida reparação. Esta é a chamada ação civil ex delicto.
Segundo Nucci (2008), trata-se de ação ajuizada pelo ofendido, na esfera cível, para obter indenização pelo dano causado pelo crime, quando existente.
Ainda que a sentença penal condenatória não tenha determinado o valor mínimo para indenização ou tenha determinado valor insuficiente à reparação pelo dano sofrido, é possível à vítima ou seus sucessores ajuizar a competente ação civil ex delicto.
A doutrina reconhece duas formas alternativas e independentes para que a vítima busque o ressarcimento pelo dano que lhe foi causado (LIMA, 2016):
1 – Ação de execução ex delicto:
Possui fundamento no art. 63 do Código de Processo Penal (CPP).
Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Ocorrerá nos casos em que o valor da indenização está previsto na sentença penal condenatória.
2 – Ação civil ex delicto:
Possui fundamento no art. 64 do Código de Processo Penal (CPP).
Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.
É, na verdade, uma ação ordinária de indenização. Poderá ser movida, independentemente da fase em que se encontrar o processo criminal. Noutro rumo, também será possível nos casos em que a sentença penal condenatória não contemplar o valor mínimo para reparação.
Ex: Fulano foi condenado por tentativa de homicídio. Ele desferiu 06 facadas em Beltrano, que passou por várias cirurgias e internações hospitalares até se recuperar fisicamente. Passou ainda por tratamento psiquiátrico para se livrar do trauma sofrido. Beltrano, no período em que esteve sob cuidados médicos, deixou de exercer suas atividades como profissional liberal.
No caso hipotético, Beltrano teria direito à reparação pelos danos materiais e morais sofridos, desde que os comprovasse devidamente.
Ressalto que o juiz da ação civil, conforme art. 64 parágrafo único do CPP, poderá suspender o seu curso, para aguardar o julgamento definitivo na esfera penal. Esta medida tem a finalidade de evitar decisões conflitantes.
Indenização à vítima na prática
Saindo da teoria e adentrando ao mundo real, o que se vê é pouca efetividade às determinações do Código de Processo Penal concernentes à reparação do dano à vítima.
São vários os fatores que contribuem para esse quadro, como por exemplo, a faalta de pedido expresso na esfera penal.
Apesar do posicionamento do CNJ, conforme já aludido anteriormente, impera na jurisprudência o entendimento de que o pedido para determinação do valor indenizatório deve ser expresso, o que na maioria das vezes não é feito pelo Ministério Público.
Assim ocorre para que seja possível a ampla defesa e o contraditório.
Neste cenário, ganha fundamental importância o papel do assistente da acusação haja vista ser ele o principal interessado em municiar o juiz com elementos capazes de autorizar a quantificação da indenização que lhe é devida (LIMA, 2016).
A falta de conhecimento das vítimas e seus familiares acerca da possibilidade de reparação e até mesmo de condições para contratar advogado para elucidar essas questões, também contribuem para tornar letra morta as disposições do CPP neste sentido.
Todavia, conforme supramencionado, a omissão do Ministério Público com relação ao pedido para fixação do quantum indenizatório não constitui obstáculo à devida reparação, que poderá ser manejada no juízo cível.
Caso a vítima ou seus sucessores não possuam condições para contratação de advogado para proposição da ação civil ex delicto, a Defensoria Pública deve ser acionada para assegurar esse direito.
Nas localidades onde não há defensoria, o próprio Ministério Público, segundo o art. 68 do CPP e entendimento consolidado do STF[2], atuará na defesa dos interesses da vítima.
E o condenado que não possui condições?
Nos casos em que o condenado não possui condições financeiras para arcar com a indenização à vítima, a ação civil ex delicto acaba por não atingir o seu escopo.
Daí mostra-se bastante interessante e sensata a ideia do promotor Luciano Gomes de Queiroz Coutinho, do município de Piracicaba (SP).
Após a decisão do STF de indenização aos presos submetidos a situação degradante, a qual fiz menção no início deste artigo, o referido membro do Ministério Público, solicitou ao judiciário um levantamento de eventuais pedidos reparação manejados pelos condenados.
Conforme noticiado pelo portal de notícias G1, o promotor pretende usar a informação para tentar fazer com que aqueles presos que não pagaram demandas indenizatórias às quais também foram condenados possam finalmente quitar sua dívida com a Justiça. Segundo ele:
É fato notório que a grande maioria dos condenados pela prática de crimes não indeniza suas vítimas, nem paga integralmente as multas e prestações pecuniárias inseridas em suas condenações criminais, como deveria. Considerando que significativa parcela de autores de delitos não possui patrimônio declarado, os débitos raramente são quitados.
Estratégia louvável que possibilitaria de um lado, a indenização ao condenado que se encontra em estabelecimento que não lhe garante dignidade e por outro a devida reparação àqueles que mais sofreram com o crime, a vítima e seus familiares.
Considerações Finais
Indenizar a vítima ou seus sucessores não é apenas medida realizadora de recomposição patrimonial, vai muito além disso. Estabelece a aplicação de uma justiça completa, que pune e exige a reparação pelo dano causado.
Como visto, a reparação dos danos esbarra, principalmente, na omissão de alguns órgãos públicos e no desconhecimento da população em geral. Tais circunstâncias inviabilizam o ajuizamento das ações específicas.
Toda essa conjuntura aliada à insuficiência de políticas públicas acabam por fomentar a ideia de que a vítima é de fato uma ILUSTRE ESQUECIDA. Tomara que um dia essa triste realidade tenha seu fim.
Grande abraço a todos!
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[1] TJMG: Apelação Criminal 1.0024.15.199323-5/001 – 1993235-45.2015.8.13.0024 (1) – Des.(a) Wanderley Paiva – Publicado em 10/02/2017
[2] STF, Tribunal Pleno, RE 135.328/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29/06/1994, DJ 20/04/2001. Em sentido semelhante: STF, 1ª Turma, RE 147.776/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19/05/1998, DJ 19/06/1998, p. 136; STJ, 4ª Turma, REsp 219.815/SP, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias – Juiz Federal convocado do TRF/1ª –, j. 11/11/2008, DJe 24/11/2008. Reconhecendo a legitimação extraordinária do Ministério Público para promover, como substituto processual, a ação de indenização ex delicto em favor do necessitado quando, embora existente no Estado, os serviços da Defensoria Pública não se mostrarem suficientes para a efetiva defesa da vítima carente: STJ, 4ª Turma, AgRg no Ag 509.967/GO, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 12/12/2005, DJ 20/03/2006 p. 276.
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