Bandido bom é bandido morto…
Antes de emitir qualquer opinião acerca do título desse artigo, por favor, leia até o final.
Sei que muitos devem estar concordando com a frase em destaque e certamente possuem um milhão de argumentos para defenderem esta afirmativa tão nefasta.
Em novembro de 2016 o portal de notícias G1 divulgou pesquisa realizada pelo Instituto DATAFOLHA a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A referida pesquisa analisou o índice de concordância dos brasileiros com relação à afirmação: Bandido bom é bandido morto.
A maioria dos brasileiros (57%) defende a afirmação. O índice de concordância sobe para 62% em municípios com menos de 50 mil habitantes, segundo o levantamento. No comparativo com 2015, quando a mesma pesquisa foi feita, a aceitação da frase aumentou. Naquele ano 50% da população se dizia a favor da morte de criminosos.
Pois bem, diante deste quadro e das recentes rebeliões que abalaram todo o país, quando mais de 60 detentos foram mortos, apenas no Amazonas, resolvi escrever algumas linhas sobre o assunto.
Certamente meus alunos e ex-alunos devem estar surpresos por me ver escrevendo na área de direito penal, já que costumo dedicar-me, principalmente, às áreas de direito constitucional, administrativo e previdenciário.
Na verdade, o pano de fundo da discussão que envolve a afirmação “bandido bom é bandido morto” possui natureza constitucional, e é nessa seara que pretendo desenrolar essas próximas linhas.
Mas, antes quero dar a minha opinião. Eu concordo com a frase “bandido bom é bandido morto” e mais, penso que o Estado, com todo o seu aparato, deve envidar todos os esforços neste sentido.
Por favor, não pare a leitura por aqui, vamos à minha justificativa:
A Pena e seus aspectos legais
Antes de adentrar especificamente na execução da pena, é importante tecer alguns comentários acerca do conceito de pena. Segundo Estefan (2012):
É a retribuição imposta pelo Estado em razão da prática de um ilícito penal e consiste na privação ou restrição de bens jurídicos determinada pela lei, cuja finalidade é a readaptação do condenado ao convívio social e a prevenção em relação à prática de novas infrações penais.
A partir deste conceito é possível perceber que nem todo criminoso será realmente preso.
Assim ocorre porque a legislação brasileira prevê várias espécies de pena. Quanto maior a gravidade do delito, maior e mais gravosa será a pena aplicada.
Existem, basicamente, 05 tipos de penas: (Estefan, 2012)
Perda de bens – ocorre quando pertences do condenado são revertidos ao Fundo Penitenciário Nacional.
Multa – Afeta o patrimônio do acusado. É o pagamento de valores determinados na sentença.
Prestação social alternativa
Suspensão ou interdição de direitos – pode consistir, por exemplo, na proibição do exercício de profissão ou de função pública etc.
Privação ou restrição de liberdade – Afeta a liberdade (direito de ir e vir)
Finalidades da pena
Dentre as várias teorias que explicam as finalidades da pena. Alguns doutrinadores, com base no art. 59 (parte final) do Código Penal, entendem que o Brasil adota a teoria denominada Mista (também chamada em algumas doutrinas de Eclética, conciliatória ou dialética).
Consoante esta teoria a pena tem duas finalidades: punir e prevenir. Destarte, a pena no Brasil teria tem uma TRÍPLICE finalidade: retribuição (castigar, punir) / prevenção geral (que sirva de exemplo para as pessoas em geral) / prevenção especial (que o condenado não volte a delinquir).
Fundamentos da Pena
Segundo, Estefan (2012), a aplicação da pena ao condenado possui diversos fundamentos, dos quais destaco:
- Preventivo: A pena intimida o cidadão comum. Há um receio de cometimento do crime, ao menos em tese, por conta da punição prevista. Quando o condenado cumpre sua pena, a ideia é a de que ele não volte a delinquir para não passar novamente por aquilo.
- Retributivo: A pena é também um castigo, proporcional ao ato que foi cometido.
- Reparatório: consiste em compensar a vítima ou seus parentes pelas consequências advindas da prática do ilícito penal.
- Readaptação: A pena tem a função ainda de propiciar ao condenado meios para sua recuperação. Meios para sua reintegração social.
Neste artigo vou me ater às penas privativas de liberdade (prisão)
Verificados esses conceitos básico, já é possível concluir que a grande maioria dos presídios não possuem estrutura capaz de realizar todos os fundamentos previstos para a pena. Lembrando que estes fundamentos estão previstos na própria Lei de Execuções Penais (LEP).
O art. 1º da Lei 7210/84 (Lei de Execuções Penais – LEP), assim dispõe:
Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Nota-se que, na prática, ocorre exatamente o contrário. Pelo menos é isso que vislumbramos pelas manchetes dos jornais.
O Sistema de execução de pena tradicional não prepara o “bandido” para o seu retorno à sociedade. Na maioria dos casos, aplica apenas o caráter retributivo da pena, isto é, a pena somente como castigo.
A própria sociedade, de uma maneira geral, não consegue compreender a necessidade da recuperação do condenado. A natureza humana acaba nos empurrando a buscar a vingança e o castigo.
Como no Brasil não existe pena perpétua, o condenado um dia será posto em liberdade. E quando esse dia chegar, é necessário que ele esteja preparado para se reintegrar à sociedade. Do contrário, voltará a delinquir.
No Brasil, conforme destaca a própria Constituição Federal de 88 (CF/88) em seu art. 5º, inciso XLVII, não haverá penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.
Valdeci Antônio Ferreira (2016) grande entusiasta das APACS no Brasil e fundador da APAC de Itaúna – MG (referência nacional e mundial na recuperação de apenados), destaca em seu livro “Juntando cacos, resgatando vidas”, alguns pontos importantes que denotam a precariedade e falência do sistema prisional tradicional.
Segundo o autor, os problemas começam pelos prédios, muitas vezes construídos tendo como base apenas a segurança e a economia, deixando de lado, o caráter humano.
A superpopulação prisional é outro grande entrave. Não penso que o Estado deva deixar de prender, não é isso. Mas o nosso sistema não está preparado para suportar a população que hoje se encontra reclusa.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou em 2014 um estudo demonstrando que havia mais de 711.000 (setecentos e onze mil) presos no Brasil, incluindo os que estão em prisão domiciliar) para um sistema que possui pouco mais de 357.000 (trezentas e cinquenta e sete mil) vagas.
O relatório dava conta ainda que mais de 373.000 (trezentos e setenta e três mil) mandados de prisão aguardavam cumprimento[1]. Diante destes dados, é possível afirmar que em 2014 havia um déficit de, pelo menos, 728.000 (setecentas e vinte e oito mil) vagas.
Em alguns estabelecimentos prisionais a superlotação chega a números alarmantes. No complexo penitenciário Anísio Jobin, local onde ocorreu o massacre de detentos no início de 2017, segundo o G1, 1.224 presos cumpriam pena em regime fechado no local, que tinha apenas 454 vagas – o que representa um excedente de 170%.
Há presídios em que a situação é pior, em que os detentos se revezam no momento de dormir (quando conseguem dormir). Não há, em geral, uma separação dos presos de maior periculosidade daqueles que cometeram crimes de menor potencial.
Ferreira (2016) destaca outros fatores que contribuem para a falência do sistema tradicional como a ociosidade do preso, a perda de sua identidade, a corrupção e a presença de drogas etc.
Como muitos afirmam, a prisão (em geral, pois creio que deva existir alguma exceção) acaba se tornando uma escola para formar bandidos.
O Método APAC
O método APAC teve o seu início na década de 70, encabeçado por pessoas preocupadas com o sistema carcerário e os seus maléficos reflexos para a sociedade. Esse grupo, guiado pelo Dr. Mário Ottoboni, iniciou uma jornada que culminou na fundação da primeira APAC na cidade de São José dos Campos.
O método desenvolvido (e em constante aperfeiçoamento) tem como preceito básico a valorização humana. Um sistema em que o ser humano é o centro. Um sistema em que a responsabilidade pelo presídio (chamado de Centro de Reintegração Social) é dos próprios presos (chamados de recuperandos).
Como assim? Uma prisão sem agentes de segurança ou policiais armados? Isso mesmo.
APAC, significa Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, segundo Ferreira (2016), é uma entidade civil, de direito privado, sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria, destinada à recuperação e à reintegração social dos condenados a pena privativa de liberdade.
As APAC’s atuam em parceria com o Estado e, principalmente, com a comunidade para transformar a forma cumprimento de pena.
O método APAC tem como fundamento 12 elementos: (Ferreira, 2016)
1 – Participação da Comunidade:
É preciso que a comunidade abrace o método APAC, do contrário a sua implantação restará prejudicada. A APAC só existe nos locais em que a comunidade rompeu as barreiras do preconceito e aderiu à ideia.
2 – Recuperando ajudando recuperando:
A APAC desperta nos recuperandos os sentimentos de responsabilidade, ajuda mútua e solidariedade. O recuperando é o principal ator do seu processo de reintegração social.
3 – Trabalho:
O trabalho na APAC não tem o objetivo apenas de geração de renda, mas sim de resgate de valores essenciais ao ser humano. O recuperando passa a vislumbrar a sua importância na comunidade, pelo fruto do seu trabalho. Noutro lado, o trabalho (e também o estudo) propicia a todos uma ocupação útil durante a sua privação de liberdade.
4 – A espiritualidade e a importância de se fazer a experiência de Deus:
Victor Frankl (2003) apud Ferreira (2016) elucida que “a APAC vê o homem como um ser biopsicossocial e espiritual”. É realizado trabalho ecumênico para que todos possam ter a experiência do Amor divino.
5 – Assistência Jurídica:
A APAC, por seus próprios meios ou através de parcerias e do trabalho de voluntários, oferece assistência jurídica gratuita aos recuperandos (apenas na execução da pena) que não possuem advogados contratados.
6 – Assistência à Saúde:
A APAC viabiliza todos os meios necessários para que os recuperandos tenham o atendimento de que necessitam. Essa assistência engloba a psicológica, física, mental, odontológica, dependência química, entre outras.
7 – A Família:
A família é um dos pilares sustentadores do método. A família dos recuperandos é também acompanhada pela APAC para que todos possam caminhar juntos. A vítima do delito e/ou a sua família também são assistidos pela entidade.
8 – O voluntário e o curso para a sua formação:
Os voluntários são as pessoas que ofertam parte do seu tempo e dos seus dons para ajudar os recuperandos. A atividade dos voluntários vai desde a oferta de serviços, como consultas etc, até a realização de trabalhos de valorização humana e de apoio às famílias. A participação dos voluntários permite não só a oferta de serviços que a APAC não teria recursos para contratar como também denota o entrosamento e o compromisso da comunidade com o recuperando. Afinal, esse recuperando um dia estará de volta às ruas. Todos os voluntários devem passar por cursos e treinamentos para compreensão do método.
9 – Centro de Reintegração Social (CRS):
É o espaço físico da APAC. O Código Penal prevê três regimes para cumprimento da pena de reclusão. Fechado, semiaberto e aberto. O método APAC pode ser aplicado aos três regimes, todos eles são englobados no projeto do CRS.
Outro ponto importante, é que o CRS deve estar em local servido por transporte público para facilitar o acesso dos familiares e assim permitir uma adequada reinserção social.
10 – Mérito:
Conforme Ferreira (2016), o mérito “constitui a vida do recuperando desde o momento em que ele chega”. Na verdade, os benefícios na execução da pena (como a progressão de regime, por exemplo) são autorizados mediante o cumprimento de dois requisitos: tempo e mérito. Neste contexto na APAC existe a CTC (Comissão Técnica de Classificação) que exerce importante papel nessa análise.
11 – Jornada de Libertação com Cristo:
É um momento de reflexão mais aprofundada, realizado em um encontro de 04 dias realizado pela APAC.
12 – Valorização Humana (base do método APAC)
Observa-se que todos os elementos da APAC se voltam à valorização humana. É quase impossível recuperar o bandido, enquanto não é valorizado como ser humano. O que a APAC faz é um processo de resgate do ser humano através dessa valorização.
Na APAC não há superlotação, cada recuperando possui sua cama. São eles quem cuidam da limpeza dos ambientes. No regime fechado, eles ficam soltos durante todo o dia – há horário para o recolhimento em suas celas.
Quem fica com a chave das celas são os próprios recuperandos. Eles se avaliam e possuem rotina intensa baseada na disciplina.
No regime fechado os recuperandos fazem artesanato, utilizando-se de tesouras com ponta, estiletes, e outros materiais. O alicerce de confiança estabelecido é tão grande que até mesmo a fiscalização para verificação de quem está trabalhando ou não fica por conta dos próprios recuperandos.
O recuperando é reconhecido enquanto ser humano. Ele reconhece o seu erro e que precisa mudar. A APAC lhe oportuniza os instrumentos para que essa mudança se efetive.
APAC x Sistema Comum
Antes que digam que a ideia da APAC é “passar a mão na cabeça do preso”, é importante salientar que a disciplina na APAC é, talvez, mais rigorosa que no sistema tradicional. O diferencial é a valorização humana. Existe um regulamento muito bem redigido e de amplo conhecimento dos recuperandos.
Faltas graves podem ser punidas, além de outras sanções, com o retorno do recuperando ao sistema comum.
Quem não conhece a APAC pode pensar que talvez esse método não funcione. Contudo, após mais de 40 anos de sua implantação no primeiro estabelecimento, as estatísticas são amplamente favoráveis à APAC. Vejamos:
– A Reincidência, ou seja, o condenado que é posto em liberdade e volta cometer crime:
No sistema tradicional, a reincidência (média nacional) gira em torno de 85%. (Ferreira, 2016)
Pelo método APAC, a reincidência é inferior a 10%. (Ferreira, 2016)
– O custo mensal do condenado:
No sistema tradicional, a média nacional do custo do condenado é de R$ 2.400,00 por mês
Pelo método APAC, o custo do recuperando é de pouco mais de R$ 1.000,00 por mês
Obs: Segundo o portal de notícias G1, o custo mensal do preso no Amazonas chega a R$ 4.129,00
– O custo para a abertura de uma vaga no sistema prisional:
No sistema tradicional, o custo é de R$ 37.000,00
Pelo método APAC, o custo é de R$ 27.000,00. Em algumas localidades é ainda menor.
Considerações Finais
Para alguns é difícil admitir, mas o método APAC realmente é o caminho para a crise no sistema prisional enfrentado pelo nosso país, os números não mentem.
É a partir da valorização humana que se chega à recuperação do condenado.
Claro que nem todos os condenados manifestarão vontade em aderir à APAC, e esta é uma condição básica para ingresso no sistema. Daí a necessidade de manutenção de presídios mais humanizados.
Outros países, mais desenvolvidos que o Brasil já buscaram formas para a metodologia na execução penal. Segundo Ferreira (2016), países como Holanda e Canadá apostaram em prisões modernas e bem equipadas – mas a reincidência continua alta.
Em alguns países menos desenvolvidos, sobretudo na África, Ásia e América Latina, apostaram em prisões insalubres, superlotadas e expondo os condenados a maus-tratos – amargam altos índices de reincidência.
Estados Unidos e outros países que apostaram no trabalho como forma de recuperação, também não obtiveram êxito nos índices de reincidência. Pois o trabalho sozinho não é capaz de recuperar.
A APAC visa promover a justiça, socorrer a vítima (deixada de lado no Sistema tradicional), proteger a sociedade para, assim, recuperar o preso. Os 12 elementos fundamentais, supramencionados, diferenciam o método APAC e colaboram para o seu sucesso.
A inovação do método APAC consiste em cumprir todos os preceitos determinados pela CF/88 e regulamentados na Lei de Execução Penal. Tratamento digno para recuperação do condenado.
O que a população precisa entender, repise-se, é que um dia o condenado será posto em liberdade… (é necessário que ele esteja pronto)
Com relação à assertiva inicial “BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO”.
O meu ponto de vista, repousa nos preceitos básicos da APAC. Entendo que a APAC é o único caminho para uma execução de excelência. Modelo que já é copiado por países do mundo inteiro.
Depois de compreender o método da APAC, vejo que é necessário MATAR o bandido que existe dentro do condenado para que assim seja possível salvar esse ser humano e, por consequência, transformar a sociedade. O resgate de valores e demais estratégias que o método adota são as ferramentas para esta realidade.
O Estado deve envidar todos os esforços para matar o bandido (dentro da ideia já exposta), apoiando o método APAC e, através da valorização humana, buscar uma efetiva paz social.
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Grande abraço!
[1] O portal Estadão divulgou recentemente (janeiro/2017), que o número de mandados de prisão aguardando cumprimento já passa dos 564.000.