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O Brasil não é para amadores.

Essa é, talvez, uma das frases mais revisitadas nos últimos tempos pela população brasileira. A cada momento de crise, nos voltamos a ela, quase como uma exortação.

A ideia central é dizer que apesar dos problemas enfrentados pela nossa população, nosso “jeitinho brasileiro” faz com que seja articulada alguma saída. Nem sempre a solução é a melhor possível, ou a mais legal (do ponto de vista jurídico) possível, mas não ficamos sem um desfecho para o caso.

A ideia de que o Brasil não é para amadores nos leva ao entendimento de que para viver em um país como o nosso é necessário ser profissional (que seria o oposto de amador). Mas a pergunta que fica é: Profissional em que?

Em usar do velho “jeitinho brasileiro” para resolver?

Vivemos novos tempos há bastante tempo. O “jeitinho” já não é suficiente, nem mesmo aceitável para a solução das demandas que a sociedade moderna apresenta dia-a-dia, sobretudo quando tratamos acerca do Poder Público.

Gerir a coisa pública demanda profissionalismo de fato, assertividade com a população assistida, observância da legislação e dos princípios norteadores, entre outros atributos.

Nos últimos tempos não foram poucos os escândalos de corrupção na esfera pública, envolvendo desde os pequenos municípios até o alto escalão do Governo Federal. Empresários, agentes públicos e políticos de mãos dadas neste processo.

Neste texto vou abordar acerca de alguns aspectos ligados à profissionalização no trato com a coisa pública, com enfoque especial no accountability, compliance e prestação de contas, enquanto ferramentas de governança essenciais para o enfrentamento e prevenção aos desvios.

Accountability – o poder da responsabilidade

Os agentes públicos cuidam da condução da atividade administrativa visando à satisfação dos interesses da coletividade. Creio que temos aqui um conceito bastante simplista da responsabilidade desses agentes.

Responsabilidade.

Esta é a palavra de ordem. Afinal de contas, não estamos tratando aqui acerca da gestão privada, mas sim da gestão pública. Quem cuida dos interesses da coletividade, logicamente, não cuida dos interesses próprios, cuida do interesse coletivo.

O cidadão entrega um mandato ao agente público, ou seja, o poder de representá-lo na condução da coisa pública e tal prerrogativa deve ser exercida nos estritos limites estabelecidos por esta outorga. Neste ponto, a responsabilidade ganha um grau superior de importância.

Todo este contexto de responsabilidade está ligado ao termo ACCOUNTABILITY.

A palavra accountability é um termo de origem inglesa, que pode ser traduzido por responsabilidade ou por imputabilidade, obrigação de que alguém responda pelo que faz, vale dizer a obrigação dos agentes do Estado em responder por suas decisões, ações e omissões, o que já é universalmente consagrado como norma nas sociedades mais desenvolvidas. Accountability representa a obrigação que a organização tem de prestar contas dos resultados obtidos, em função das responsabilidades que decorrem de uma delegação de poder. (MARIA, 2012, pág. 35)

Como se verifica accountability está ligado ao conceito de responsabilidade frente à coisa pública. Esta responsabilidade vai desde o planejamento e elaboração das políticas públicas, até a sua execução e prestação de contas.

Accountability é uma das ferramentas da chamada governança, de maneira geral, e mais especificamente da governança pública. Tal constatação se vê refletida no Decreto Federal 9.203/2017 (que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional). Senão vejamos, o seu art. 3º:

Art. 3º São princípios da governança pública:

I – capacidade de resposta;

II – integridade;

III – confiabilidade;

IV – melhoria regulatória;

V – prestação de contas e responsabilidade; e

VI – transparência.

Como visto, accountability também envolve a transparência na gestão pública e a prestação de contas ao povo que é destinatário final da atividade estatal. Este é o eixo central da chamada accountability governamental.

A transparência é uma ampliação de um princípio básico, de observância obrigatória pelo ente público e seus agentes, previsto no art. 37 da Constituição Federal de 88 (CF/88). Ali está disposto, em seu caput, acerca do princípio da publicidade. Este princípio denota a necessidade de publicação dos atos da administração, permitindo não só o acesso às informações, mas também a participação do cidadão.

Nesta linha, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (LC 101/2000), em seu art. 1º, §1º, destaca a importância da publicidade, no viés da transparência:

Art. 1º – (…)

§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

A LRF trouxe um capítulo específico para tratar na chamada transparência da gestão fiscal, onde estão dispostos instrumentos capazes de assegurar o acesso, em tempo real, às despesas e demais atos do Poder Público.

Tudo isso favorece uma relação clara e assertiva entre agentes públicos e cidadãos. Colaborando para a correção e justificação dos atos firmados em nome da coletividade.

Compliance – Importante ferramenta de Integridade

A responsabilidade na governança pública pressupõe agir de modo reto, com base no que é determinado pela legislação e em consonância com os princípios ético que regem a nossa sociedade.

Neste intento, outro instrumento posto à disposição do gestor público é o compliance. Importante ferramenta diretamente ligada à governança e à accountability.

Compliance origina-se do verbo inglês to comply. Não possui uma tradução específica para a língua portuguesa, mas, basicamente, significa “agir de acordo com um comando ou uma regra, obediência a uma ação determinada” (TOMAZ, 2018, p. 25).

Compliance está, portanto, intimamente ligado ao princípio da Legalidade. Mas em uma aplicação mais específica, voltada não só ao cumprimento da lei em sentido estrito, mas de todos os regramentos previstos para determinada atividade.

Agir com base no compliance, significa agir sem desvios.

Não é novidade para ninguém, a corrupção histórica que assola o Brasil. Escândalos mais recentes apelidados pela mídia como mensalão, petrolão, rachadinhas se tornaram corriqueiros. Malas de dinheiro, desvios e mais desvios.

 O compliance preconiza o exato cumprimento das determinações legais com vistas à otimizar os recursos, prevenir os desvios e riscos, com vistas à proporcionar uma administração limpa e focada, no caso da Administração Púbica, no interesse do cidadão.

Vários diplomas legislativos no cenário mundial, marcam a preocupação, em um passado mais recente, com a corrupção perpetrada na esfera pública. Destes, podemos citar:

– 1977. Foreign Corrupt Practices Act (Lei de Práticas de Corrupção no Exterior), conhecida como a Lei Anticorrupção Transnacional dos Estados Unidos, a qual estabelece que as empresas devem manter livros de registros, refletindo precisamente suas transações, deve possuir sistema adequado de controle interno, bem como prevê sanções penais e civis para funcionários, administradores e seus representantes pela prática de suborno (TOMAZ, 2018, p. 23)

– 2010. Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protectin Act (Lei de Reforma e Proteção do Consumidor).

– 2010. UK Bribery Act (Lei de Propina) – Esta legislação previne condutas relacionadas às propinas, uma das normas mais severas do mundo sobre corrupção.

No Brasil, a CF/88 estabelece diversos dispositivos de combate à corrupção e da observância à legislação. O art. 37, anteriormente citado, é um dos exemplos.

Mas podemos citar outras legislações mais específicas, como:

– Decreto n. 5.687/2006 – Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003

– Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa – recentemente atualizada pela Lei 14.230/2021

– Lei de Licitações – Lei 8.666/93 e Lei 14.133/2021

– Lei de Responsabilidade Fiscal

– 12.846/2013 – Lei Anticorrupção

Todo esse aparato legislativo contribui para a aplicação do compliance nas esferas privada e pública no Brasil. As legislações não citam especificamente o termo compliance, mas muitas delas utilizam a chamada “integridade”.

Para muitos autores, a integridade é um dos caminhos trilhados pelo compliance, no tocante ao combate à corrupção.

Interessante destacar como o desenvolvimento e aplicação de um programa de compliance pode ajudar sobremaneira a condução da atividade administrativa. Com a sua implementação os agentes conheceriam os objetivos e planos traçados pelo ente público, a forma como os alcançariam e resultados esperados. A partir daí toda a estratégia para a consecução das atividades, baseada na lei e em princípios éticos bem estabelecidos, poderia ser traçada e bem executada para atendimento às finalidades precípuas do Estado.

Parece um mundo utópico, mas é possível.

Em Minas Gerais foi estabelecido o Plano Mineiro de Promoção da Integridade – PMPI, através do decreto estadual 47.185/2017. A Controladoria Geral do Estado – CGE criou um guia de integridade pública que orienta os demais órgãos para a sua confecção. A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais publicou a versão mais recente do seu programa de integridade em março de 2022.

O manual publicado pela CGE prevê oito eixos para organização do programa: governança e comprometimento da alta administração; planejamento estratégico e gestão de riscos; controles internos; conflito de interesses e nepotismo; código de ética e comissão de ética; canal de denúncias; gestão de pessoas; e transparência pública e controle social.

O Plano de Integridade da SES/MG é uma estratégia que depende das fases de diagnóstico, elaboração, validação, comunicação/execução e monitoramento. A observância dessas etapas é fundamental para que seja possível o desenvolvimento de atitudes que proporcionem: a educação, a adaptação, a integração e a sociabilização em consonância com os objetivos, os valores e a missão do SUS/MG.

O plano de integridade aplicado em toda sua essência deve possibilitar uma verdadeira quebra de paradigmas e mudança de mentalidade em toda a organização pública.

Compliance e Accountability são sinônimos de Burocracia?

A Administração Pública no Brasil e no mundo passou por um processo evolutivo que se iniciou na chamada administração patrimonialista, onde não havia divisão entre o público e o privado. A administração burocrática, onde os procedimentos e regras estabelecidas pela lei ditavam a marcha administrativa e a chamada administração gerencial. Esta última com foco no cidadão, flexibilização da gestão e maior eficiência na condução da atividade administrativa.

Estes modelos ilustram bem o caminhar dos tempos na administração pública e nos leva a pensar que o modelo burocrático foi inteiramente superado pelo gerencial. O que não espelha a completa a verdade.

Explico melhor.

A burocracia impõe a procedimentalização das atividades administrativas baseadas na lei. Assim, há o estabelecimento de processos e procedimentos para a realização das ações desenvolvidas pelo ente público.

A análise rasa dessa burocracia poderia nos levar a rechaçar por completo tal modelo. Porém, aprofundando um pouco mais na análise, é possível perceber que tal padronização é importante.

A formalização de um procedimento estabelecido em lei permite a previsibilidade da atividade administrativa e, consequentemente, o seu controle. E isso é de fundamental importância no estudo e aplicação do compliance e accountability.

Como falar em responsabilidade, transparência e observância dos regramentos, sem normas claras e bem estabelecidas acerca dos atos administrativo.

O problema não está na burocracia em si, mas sim no seu excesso. A burocracia não pode ser um fim em si mesmo, sob pena de deturpar a finalidade maior da atividade administrativa, que é o atendimento ao cidadão. Por outro lado, a burocracia enquanto atividade meio é instrumento necessária para o controle da Administração.

Os controles internos e externos são essenciais para o accountability e compliance.

O dever de Prestar Contas

Como visto anteriormente, accountability e compliance são importantes ferramentas da governança pública, que possibilitam o atendimento efetivo aos princípios norteadores da administração pública, previstos na CF/88.

Neste último capítulo quero dar enfoque ao dever de prestar contas, que está sob a abrangência dos instrumentos de referência em estudo.

O dever de prestar contas pelo gestor diz respeito à sua atividade enquanto mero administrador.

No conceito da legislação civil, o proprietário e o administrador exercem funções bem distintas. O proprietário é aquele que exerce todos os atributos da propriedade, entre eles, a possibilidade de usar, administrar, dispor (que significa vender, doar, alugar para quem lhe interessar), entre outras. A função do administrador se restringe a apenas gerir a coisa.

Significa dizer que o administrador não é dono, então não pode dispor da coisa como melhor lhe aprouver, pelo contrário, deve administrar nos moldes como determinado por quem tem a propriedade.

Todo aquele que administra coisa de outro tem o dever de prestar contas da sua gestão.

Estes conceitos ligados ao direito privado ilustram bem a responsabilidade do gestor em prestar contas. Há um grande número de legislações que ratificam este dever.

– Art. 48 da LRF:

Art. 48.São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. (grifo nosso)

 – Art. 82 da Lei 4320/64:

Art. 82. O Poder Executivo, anualmente, prestará contas ao Poder Legislativo, no prazo estabelecido nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios.

§ 1º As contas do Poder Executivo serão submetidas ao Poder Legislativo, com Parecer prévio do Tribunal de Contas ou órgão equivalente.

§ 2º Quando, no Município não houver Tribunal de Contas ou órgão equivalente, a Câmara de Vereadores poderá designar peritos contadores para verificarem as contas do prefeito e sôbre elas emitirem parecer.

Há diversas outras legislações federais e locais que tratam sobre o tema.

O dever de prestar contas é tão importante, que a CF/88 prevê a hipótese de intervenção federal da União nos Estados e dos Estados frente aos Municípios, pela omissão desta obrigação.

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

(…)

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

(…)

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

(…)

II – não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;

No plano ideal, não há a necessidade de lei específica que exija prestação de contas do gestor público, tal preceito deveria ser algo natural, a partir da efetiva observância dos princípios constitucionais. Para além da CF/88, prestar contas está inserido dentre os deveres morais daquele que faz a gestão de coisa alheia, neste caso, a coisa que pertence à coletividade.

Os gestores, em sua maioria, apresentam as contas porque são obrigados por lei. Mesmo obrigados, as prestam de maneira insuficiente ou são omissos nas informações apresentadas.

Daí a necessidade de estabelecer sanções pela sua não apresentação. Dentre elas, citamos o disposto no art. 11, VI da Lei 8.429/92.

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

(…)

VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades; 

O gestor enquadrado nesta legislação poderá ser penalizado com pagamento de multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 4 (quatro) anos, conforme disposto no art. 12, III da Lei 8.429/92.

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