Direito à vida e à saúde

Breves considerações acerca do atendimento médico de urgência

Não há uma hierarquia definida, do ponto de vista constitucional, dos direitos fundamentais do cidadão. Contudo, é inegável que o direito à vida merece especial atenção e destaque. Afinal, é através desse direito que será possível ao cidadão usufruir os demais, como a liberdade.

Sem a vida não somos nada.

Segundo a doutrina, o direito à vida comporta duas acepções: negativa e positiva.

Na acepção negativa, o direito à vida constitui-se em um direito de defesa, que impede/restringe a intervenção estatal e de outros particulares na existência física da pessoa.

A proibição da pena de morte, prevista no art. 5º, inciso XLVII é um nítido exemplo dessa visão negativa do direito à vida.

Na acepção positiva, há uma relação direta entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. O Estado, além de não intervir na existência física do cidadão, deve garantir o gozo digno desse direito.

Deve ser assegurado ao cidadão o acesso a bens e utilidades necessários para existência digna, devendo o Estado adotar medidas positivas no sentido da sua viabilização.

Nas palavras de Alexandre de Moraes (2014), “a Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência”.

 

Direito à vida é absoluto?

Apesar de a vida humana ser concebida como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais, ainda assim, não reveste-se de caráter absoluto.

Existem no corpo constitucional e na legislação infraconstitucional hipóteses em que o direito à vida pode ser relativizado. Dos quais cito alguns:

 

– Pena de Morte:

Há vedação no ordenamento brasileiro da pena de morte que fundamenta-se na garantia do direito à vida. A exceção ocorre apenas no caso de guerra declarada (arts. 5º, XLVII, a; 84, XIX

Sempre que o Brasil enfrenta uma forte onda de violência, permeada por crimes bárbaros e cruéis volta à tona a discussão acerca da pena de morte no Brasil. Alguns autores discutem acerca da possibilidade de sua inserção no ordenamento jurídico através de Emenda à Constituição.

O que a meu ver violaria a Constituição Federal de 88, vez que o direito à vida é consagrado como direito fundamental da pessoa, e como tal, faz parte do núcleo imutável da constituição, protegido por cláusula pétrea.

 

– O aborto terapêutico e sentimental

Independentemente da teoria que se adota com relação ao início da vida. A legislação penal assegura a não criminalização desses tipos de aborto. Na verdade, trata-se de hipótese de excludente de ilicitude.

O aborto terapêutico (ou aborto necessário) é aquele em que a má-formação do feto coloca em risco a vida da gestante (Art. 128, I do Código Penal).

O aborto sentimental é aquele resultante do crime de estupro (art. 128, II do Código Penal).

Além dessas hipóteses legais, o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012 declarou, por maioria, a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada como aborto pelo Código Penal.

 

– Lei do Abate

Permite o abate de aviões considerados hostis, categoria na qual foram incluídas por decreto as aeronaves suspeitas de carregar drogas em território nacional.

Polêmicas à parte, é o art. 303, §2º do Código Brasileiro da Aeronáutica alterado pela lei 9614/98, que autoriza a medida de destruição, em nome da segurança nacional.

 

Direito à vida e à Saúde

O direito à vida em sua acepção positiva, conforme visto, deve trazer consigo a ideia de uma vida digna, devendo o Estado prestar o aparato necessário para essa garantia. Nesta senda, o direito à saúde é consequência lógica do direito à vida digna.

No Brasil a saúde, conforme dicção constitucional, é dever do Estado e direito de todos garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o responsável por esta gama de serviços disponibilizados ao cidadão, independentemente da sua raça, credo, cor, idade ou condição financeira. Todos devem ser assistidos por este serviço público essencial.

No artigo “O STF e o direito à saúde: Distribuição de medicamentos de alto custo”, eu detalho um pouco mais acerca da legislação sanitária do nosso país. (Clique aqui para acessar o artigo)

 

Quem você escolhe salvar: o traficante em estado grave ou o policial levemente ferido?

Aqui temos uma pergunta sem reposta, uma vez que cada pessoa de acordo com suas convicções poderá emitir juízo de valor diferente. Não há resposta certa ou errada do ponto de vista valorativo. Cada um se manifestará de uma forma.

Entretanto, à luz da Constituição Federal a melhor pergunta seria: Quem o Estado atenderia primeiro? Pois o Estado deve salvar a todos, ao menos em tese.

Já que não posso responder à primeira pergunta, vamos à resposta dessa segunda:

O Estado, conforme visto, deve garantir o direito à vida sem distinção. Não cabe ao Estado valorar no tocante à vida. Qual vida vale mais? A do policial? A do traficante? A do rico? A do pobre? A da classe média? A de quem estudou? A de quem é analfabeto?

Qual padrão de valoração o Estado poderia utilizar?

Difícil dizer, todos os pontos de vista são aceitáveis à luz dos argumentos de seus defensores. O Estado deve se posicionar acima dessas convicções de cunho discriminatório e deve primar pela vida da pessoa (ser humano).

Como já disse anteriormente, o Estado tem o dever de salvar a todos, mas nos serviços de saúde existe SIM uma ordem para atendimento. Não é possível atender todos ao mesmo tempo.

Esta ordem de atendimento é realizada por meio da classificação de risco, que leva em conta a gravidade da situação.

 

Classificação de Risco

Não sou expert no assunto, mas já trabalhei na área de saúde e já fui atendido em serviços de pronto atendimento.

Ao chegar à clínica ou hospital de urgência/emergência, um profissional faz a triagem do paciente, e lhe entrega uma pulseira ou adesivo com a cor referente à sua classificação de risco:

protocolo-de-manchester

Vermelho: Emergência

Laranja: Muito urgente

Amarelo: Urgente

Verde: Pouco urgente

Azul: Não urgente

                (Imagem: saude.gov.br)

 

A prioridade de atendimento está aí estabelecida. O paciente mais grave, que enfrenta situação de emergência tem prioridade total de atendimento, já que há risco de morte iminente (nem mesmo passa pela triagem, vai direto para o atendimento médico).

A prioridade de atendimento diminui na mesma proporção do risco.

O atendimento ao paciente EMERGENTE deve sempre ser visto como prioridade total.

Nos serviços de saúde existe um sistema denominado vaga zero. Dependendo da gravidade do paciente, o serviço de urgência e emergência, ainda que esteja lotado, ainda que esteja sobrecarregado é obrigado a aceitar o paciente e a fornecer-lhe todo o suporte de tratamento necessário. Ainda que não tenha vaga disponível, o paciente EMERGENTE deve ser acolhido para tratamento.

O Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/2009) estatui no inciso I do Capítulo I, que a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

 

Quem o Estado atenderia primeiro?

Diante do exposto, o Estado deve atender primeiro o mais grave. Assegurar o direito à vida.

Não se trata de escolher entre o policial e o traficante. Entre o rico e o pobre. Entre o branco e o negro. Entre o doutor e o analfabeto. Trata-se de escolher entre o que apresenta mais risco e o que apresenta menos risco de morte.

Permitir ao Estado estabelecer distinção baseada em critérios de natureza pessoal equivaleria jogar por terra todo o ideário de garantias estabelecidos pela Carta Magna.

 

Considerações Finais

Vem ocorrendo uma inversão de valores no seio da comunidade em geral, impulsionada pelos meios de comunicação. Tal fato fica mais evidente dia-a-dia.

As instituições ligadas à segurança pública (polícias civil, militar, rodoviária etc) estão padecendo por falta de investimentos. Necessitam urgentemente de melhores condições de trabalho para enfrentamento ao crime. Seus agentes precisam ser melhor remunerados e mais valorizados.

Neste caso, salvar a Polícia é algo que deve estar na agenda dos nossos governantes para garantir o direito à vida digna dos cidadãos.

 

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Grande abraço a todos!