Accountability, Compliance e Prestação de Contas: Responsabilidades do Gestor

O Brasil não é para amadores.

Essa
é, talvez, uma das frases mais revisitadas nos últimos tempos pela população
brasileira. A cada momento de crise, nos voltamos a ela, quase como uma
exortação.

A
ideia central é dizer que apesar dos problemas enfrentados pela nossa
população, nosso “jeitinho brasileiro” faz com que seja articulada alguma
saída. Nem sempre a solução é a melhor possível, ou a mais legal (do ponto de
vista jurídico) possível, mas não ficamos sem um desfecho para o caso.

A
ideia de que o Brasil não é para amadores nos leva ao entendimento de que para
viver em um país como o nosso é necessário ser profissional (que seria o oposto
de amador). Mas a pergunta que fica é: Profissional em que?

Em
usar do velho “jeitinho brasileiro” para resolver?

Vivemos novos tempos há bastante tempo. O “jeitinho” já não é suficiente, nem mesmo
aceitável para a solução das demandas que a sociedade moderna apresenta
dia-a-dia, sobretudo quando tratamos acerca do Poder Público.

Gerir
a coisa pública demanda profissionalismo de fato, assertividade com a população
assistida, observância da legislação e dos princípios norteadores, entre outros
atributos.

Nos
últimos tempos não foram poucos os escândalos de corrupção na esfera pública,
envolvendo desde os pequenos municípios até o alto escalão do Governo Federal.
Empresários, agentes públicos e políticos de mãos dadas neste processo.

Neste texto vou abordar acerca de alguns aspectos ligados à profissionalização no trato com a coisa pública, com enfoque especial no accountability, compliance e prestação de contas, enquanto ferramentas de governança essenciais para o enfrentamento e prevenção aos desvios.

Accountability – o poder da
responsabilidade

Os
agentes públicos cuidam da condução da atividade administrativa visando à
satisfação dos interesses da coletividade. Creio que temos aqui um conceito
bastante simplista da responsabilidade desses agentes.

Responsabilidade.

Esta
é a palavra de ordem. Afinal de contas, não estamos tratando aqui acerca da
gestão privada, mas sim da gestão pública. Quem cuida dos interesses da
coletividade, logicamente, não cuida dos interesses próprios, cuida do
interesse coletivo.

O
cidadão entrega um mandato ao agente público, ou seja, o poder de representá-lo
na condução da coisa pública e tal prerrogativa deve ser exercida nos estritos
limites estabelecidos por esta outorga. Neste ponto, a responsabilidade ganha
um grau superior de importância.

Todo
este contexto de responsabilidade está ligado ao termo ACCOUNTABILITY.

A palavra accountability é um termo de origem inglesa, que pode ser traduzido por responsabilidade ou por imputabilidade, obrigação de que alguém responda pelo que faz, vale dizer a obrigação dos agentes do Estado em responder por suas decisões, ações e omissões, o que já é universalmente consagrado como norma nas sociedades mais desenvolvidas. Accountability representa a obrigação que a organização tem de prestar contas dos resultados obtidos, em função das responsabilidades que decorrem de uma delegação de poder. (MARIA, 2012, pág. 35)

Como
se verifica accountability está ligado ao conceito de responsabilidade frente à
coisa pública. Esta responsabilidade vai desde o planejamento e elaboração das
políticas públicas, até a sua execução e prestação de contas.

Accountability
é uma das ferramentas da chamada governança, de maneira geral, e mais
especificamente da governança pública. Tal constatação se vê refletida no
Decreto Federal 9.203/2017 (que dispõe sobre a política de governança da
administração pública federal direta, autárquica e fundacional). Senão vejamos,
o seu art. 3º:

Art. 3º São princípios da governança pública:

I – capacidade de resposta;

II – integridade;

III – confiabilidade;

IV – melhoria regulatória;

V – prestação de contas e responsabilidade; e

VI – transparência.

Como
visto, accountability também envolve a transparência na gestão pública e a
prestação de contas ao povo que é destinatário final da atividade estatal. Este
é o eixo central da chamada accountability governamental.

A
transparência é uma ampliação de um princípio básico, de observância obrigatória
pelo ente público e seus agentes, previsto no art. 37 da Constituição Federal
de 88 (CF/88). Ali está disposto, em seu caput, acerca do princípio da
publicidade. Este princípio denota a necessidade de publicação dos atos da
administração, permitindo não só o acesso às informações, mas também a
participação do cidadão.

Nesta
linha, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (LC 101/2000), em seu art. 1º,
§1º, destaca a importância da publicidade, no viés da transparência:

Art. 1º – (…)

§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

A
LRF trouxe um capítulo específico para tratar na chamada transparência da
gestão fiscal, onde estão dispostos instrumentos capazes de assegurar o acesso,
em tempo real, às despesas e demais atos do Poder Público.

Tudo isso favorece uma relação clara e assertiva entre agentes públicos e cidadãos. Colaborando para a correção e justificação dos atos firmados em nome da coletividade.

Compliance – Importante ferramenta de
Integridade

A
responsabilidade na governança pública pressupõe agir de modo reto, com base no
que é determinado pela legislação e em consonância com os princípios ético que
regem a nossa sociedade.

Neste
intento, outro instrumento posto à disposição do gestor público é o compliance.
Importante ferramenta diretamente ligada à governança e à accountability.

Compliance origina-se do verbo inglês to comply. Não possui uma tradução específica para a língua portuguesa, mas, basicamente, significa “agir de acordo com um comando ou uma regra, obediência a uma ação determinada” (TOMAZ, 2018, p. 25).

Compliance
está, portanto, intimamente ligado ao princípio da Legalidade. Mas em uma
aplicação mais específica, voltada não só ao cumprimento da lei em sentido
estrito, mas de todos os regramentos previstos para determinada atividade.

Agir
com base no compliance, significa agir sem desvios.

Não
é novidade para ninguém, a corrupção histórica que assola o Brasil. Escândalos
mais recentes apelidados pela mídia como mensalão, petrolão, rachadinhas se
tornaram corriqueiros. Malas de dinheiro, desvios e mais desvios.

 O compliance preconiza o exato cumprimento das
determinações legais com vistas à otimizar os recursos, prevenir os desvios e
riscos, com vistas à proporcionar uma administração limpa e focada, no caso da
Administração Púbica, no interesse do cidadão.

Vários
diplomas legislativos no cenário mundial, marcam a preocupação, em um passado
mais recente, com a corrupção perpetrada na esfera pública. Destes, podemos
citar:


1977. Foreign Corrupt Practices Act (Lei de Práticas de Corrupção no Exterior),
conhecida como a Lei Anticorrupção Transnacional dos Estados Unidos, a qual
estabelece que as empresas devem manter livros de registros, refletindo
precisamente suas transações, deve possuir sistema adequado de controle
interno, bem como prevê sanções penais e civis para funcionários,
administradores e seus representantes pela prática de suborno (TOMAZ, 2018, p.
23)


2010. Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protectin Act (Lei de
Reforma e Proteção do Consumidor).


2010. UK Bribery Act (Lei de Propina) – Esta legislação previne condutas
relacionadas às propinas, uma das normas mais severas do mundo sobre corrupção.

No
Brasil, a CF/88 estabelece diversos dispositivos de combate à corrupção e da
observância à legislação. O art. 37, anteriormente citado, é um dos exemplos.

Mas
podemos citar outras legislações mais específicas, como:


Decreto n. 5.687/2006 – Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de
2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003


Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa – recentemente atualizada pela
Lei 14.230/2021


Lei de Licitações – Lei 8.666/93 e Lei 14.133/2021


Lei de Responsabilidade Fiscal


12.846/2013 – Lei Anticorrupção

Todo
esse aparato legislativo contribui para a aplicação do compliance nas esferas
privada e pública no Brasil. As legislações não citam especificamente o termo
compliance, mas muitas delas utilizam a chamada “integridade”.

Para
muitos autores, a integridade é um dos caminhos trilhados pelo compliance, no
tocante ao combate à corrupção.

Interessante
destacar como o desenvolvimento e aplicação de um programa de compliance pode
ajudar sobremaneira a condução da atividade administrativa. Com a sua
implementação os agentes conheceriam os objetivos e planos traçados pelo ente
público, a forma como os alcançariam e resultados esperados. A partir daí toda
a estratégia para a consecução das atividades, baseada na lei e em princípios
éticos bem estabelecidos, poderia ser traçada e bem executada para atendimento
às finalidades precípuas do Estado.

Parece
um mundo utópico, mas é possível.

Em Minas Gerais foi estabelecido o Plano Mineiro de Promoção da Integridade – PMPI, através do decreto estadual 47.185/2017. A Controladoria Geral do Estado – CGE criou um guia de integridade pública que orienta os demais órgãos para a sua confecção. A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais publicou a versão mais recente do seu programa de integridade em março de 2022.

O
manual publicado pela CGE prevê oito eixos para organização do programa:
governança e comprometimento da alta administração; planejamento estratégico e
gestão de riscos; controles internos; conflito de interesses e nepotismo;
código de ética e comissão de ética; canal de denúncias; gestão de pessoas; e
transparência pública e controle social.

O Plano de Integridade da SES/MG é uma estratégia que depende das fases de diagnóstico, elaboração, validação, comunicação/execução e monitoramento. A observância dessas etapas é fundamental para que seja possível o desenvolvimento de atitudes que proporcionem: a educação, a adaptação, a integração e a sociabilização em consonância com os objetivos, os valores e a missão do SUS/MG.

O plano de integridade aplicado em toda sua essência deve possibilitar uma verdadeira quebra de paradigmas e mudança de mentalidade em toda a organização pública.

Compliance e Accountability são
sinônimos de Burocracia?

A
Administração Pública no Brasil e no mundo passou por um processo evolutivo que
se iniciou na chamada administração patrimonialista, onde não havia divisão
entre o público e o privado. A administração burocrática, onde os procedimentos
e regras estabelecidas pela lei ditavam a marcha administrativa e a chamada
administração gerencial. Esta última com foco no cidadão, flexibilização da
gestão e maior eficiência na condução da atividade administrativa.

Estes
modelos ilustram bem o caminhar dos tempos na administração pública e nos leva
a pensar que o modelo burocrático foi inteiramente superado pelo gerencial. O
que não espelha a completa a verdade.

Explico
melhor.

A
burocracia impõe a procedimentalização das atividades administrativas baseadas
na lei. Assim, há o estabelecimento de processos e procedimentos para a realização
das ações desenvolvidas pelo ente público.

A
análise rasa dessa burocracia poderia nos levar a rechaçar por completo tal
modelo. Porém, aprofundando um pouco mais na análise, é possível perceber que
tal padronização é importante.

A
formalização de um procedimento estabelecido em lei permite a previsibilidade
da atividade administrativa e, consequentemente, o seu controle. E isso é de
fundamental importância no estudo e aplicação do compliance e accountability.

Como
falar em responsabilidade, transparência e observância dos regramentos, sem
normas claras e bem estabelecidas acerca dos atos administrativo.

O
problema não está na burocracia em si, mas sim no seu excesso. A burocracia não
pode ser um fim em si mesmo, sob pena de deturpar a finalidade maior da
atividade administrativa, que é o atendimento ao cidadão. Por outro lado, a
burocracia enquanto atividade meio é instrumento necessária para o controle da
Administração.

Os controles internos e externos são essenciais para o accountability e compliance.

O dever de Prestar Contas

Como
visto anteriormente, accountability e compliance são importantes ferramentas da
governança pública, que possibilitam o atendimento efetivo aos princípios
norteadores da administração pública, previstos na CF/88.

Neste
último capítulo quero dar enfoque ao dever de prestar contas, que está sob a
abrangência dos instrumentos de referência em estudo.

O
dever de prestar contas pelo gestor diz respeito à sua atividade enquanto mero
administrador.

No
conceito da legislação civil, o proprietário e o administrador exercem funções
bem distintas. O proprietário é aquele que exerce todos os atributos da
propriedade, entre eles, a possibilidade de usar, administrar, dispor (que
significa vender, doar, alugar para quem lhe interessar), entre outras. A
função do administrador se restringe a apenas gerir a coisa.

Significa
dizer que o administrador não é dono, então não pode dispor da coisa como
melhor lhe aprouver, pelo contrário, deve administrar nos moldes como
determinado por quem tem a propriedade.

Todo
aquele que administra coisa de outro tem o dever de prestar contas da sua
gestão.

Estes
conceitos ligados ao direito privado ilustram bem a responsabilidade do gestor
em prestar contas. Há um grande número de legislações que ratificam este dever.


Art. 48 da LRF:

Art. 48.São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. (grifo nosso)

 – Art. 82 da Lei 4320/64:

Art. 82. O Poder Executivo, anualmente, prestará contas ao Poder Legislativo, no prazo estabelecido nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios.

§ 1º As contas do Poder Executivo serão submetidas ao Poder Legislativo, com Parecer prévio do Tribunal de Contas ou órgão equivalente.

§ 2º Quando, no Município não houver Tribunal de Contas ou órgão equivalente, a Câmara de Vereadores poderá designar peritos contadores para verificarem as contas do prefeito e sôbre elas emitirem parecer.


diversas outras legislações federais e locais que tratam sobre o tema.

O
dever de prestar contas é tão importante, que a CF/88 prevê a hipótese de
intervenção federal da União nos Estados e dos Estados frente aos Municípios,
pela omissão desta obrigação.

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

(…)

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

(…)

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

(…)

II – não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;

No
plano ideal, não há a necessidade de lei específica que exija prestação de
contas do gestor público, tal preceito deveria ser algo natural, a partir da
efetiva observância dos princípios constitucionais. Para além da CF/88, prestar
contas está inserido dentre os deveres morais daquele que faz a gestão de coisa
alheia, neste caso, a coisa que pertence à coletividade.

Os
gestores, em sua maioria, apresentam as contas porque são obrigados por lei.
Mesmo obrigados, as prestam de maneira insuficiente ou são omissos nas
informações apresentadas.

Daí
a necessidade de estabelecer sanções pela sua não apresentação. Dentre elas,
citamos o disposto no art. 11, VI da Lei 8.429/92.

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

(…)

VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades; 

O
gestor enquadrado nesta legislação poderá ser penalizado com pagamento de multa
civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida e
proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não
superior a 4 (quatro) anos, conforme disposto no art. 12, III da Lei 8.429/92.




Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) – Tudo que você precisa saber (ATUALIZADO de acordo com a Lei 14230/2021)

Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) – Tudo que você precisa saber. (ATUALIZADO de acordo com a Lei 14230/2021)

Esta legislação foi um importante marco no ordenamento jurídico brasileiro, que passava, à época, por uma recente redemocratização, após longos anos de ditadura militar.

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) passou recentemente por profundas alterações em seu texto. A Lei 14230/2021 estabeleceu nova redação a vários artigos e revogou outros tantos.

Tais modificações foram tão significativas que, neste texto, adotaremos, em algumas passagens, a terminologia de “NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA”.

Como explicado, a lei ainda é a mesma do ponto de vista legislativo (Lei 8429/92), mas sua essência e estrutura foram radicalmente atualizados pela Lei 14230/2021, o que justifica a expressão que utilizaremos daqui para frente.

Neste artigo eu trouxe de maneira bastante objetiva os principais conceitos dessa legislação tão importante no cenário da gestão pública.

O que é ato de improbidade administrativa?

Segundo o dicionário, improbidade significa falta de probidade; desonestidade, fraude, imoralidade. O Ato de improbidade é um ato desonesto.

Espera-se das pessoas em geral e, sobretudo dos agentes públicos pois lidam com um dinheiro que é de todos, uma conduta honesta. A pessoa comum que age com desonestidade pratica ato de improbidade. O agente público que age com desonestidade na sua atuação pública pratica ato de improbidade administrativa.

Administrativa porque é praticada contra a Administração Pública.

Segundo Lordelo (2016):

A improbidade administrativa é, portanto, a corrupção administrativa, o ato contrário à honestidade, à boa‐fé, à honradez, à correção de atitude.

Improbidade é o termo técnico para tratar da corrupção que se perfaz com a prática de ilegalidade (violação da ordem jurídica) e o desvirtuamento da função pública

A lei 14230/2021, que alterou a redação da LIA (Lei de Improbidade Administrativa), aperfeiçoou o conceito de ato de improbidade administrativa, estabelecendo no §1º do art. 1º os seus contornos:

Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.

Observem que o dolo passa a fazer parte do próprio conceito de ato de improbidade administrativa, o que significa afirmar que, sem dolo não há improbidade, ainda que exista ilegalidade na conduta. Esta, sem dúvida, foi uma das mais significativas mudanças estabelecidas pela Lei 14230/2021.

 

Previsão Legal e natureza jurídica

 

As penalidades aplicáveis àqueles que cometem atos de improbidade administrativa estão presentes na Constituição Federal de 88 (CF/88), porém o marco legal no direito brasileiro é a Lei 8429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), também chamada de LIA).

Quando foi sancionada pelo Presidente Collor em 1992 ela também era conhecida como “Lei do Colarinho Branco”.

Essa legislação trouxe maior eficácia na punição contra aqueles que praticam atos de corrupção contra a Administração Pública.

É importante deixar claro que a Lei de Improbidade Administrativa não possui natureza penal, ou seja, não há previsão de condutas criminosas ligadas à gestão pública, logo, não existe aplicação de penalidades como a prisão ou detenção.

Como assim? Então quem, por exemplo, frauda um processo de compras públicas e desvia R$ 100.000,00, não vai ser preso?

Se ficar comprovado, claro que existe essa possibilidade. Mas, neste caso será processado na esfera criminal. É o que a doutrina chama de independência de instâncias.

A pessoa que cometeu esse tipo de delito será processada criminalmente (esfera penal), sofrerá processo administrativo disciplinar (esfera administrativa) e responderá na ação de improbidade administrativa (esfera cível). Todas as penalidades aplicadas podem se acumular.

Quem pratica atos de improbidade?

 

A Lei de Improbidade Administrativa tem seu foco voltado ao agente público que cometa, dolosamente, ato de corrupção, conforme determinado em lei. Assim, é possível afirmar que quem pratica atos de improbidade administrativa é o agente público.

Neste caso, pouco importa o vínculo que possui com a Administração Pública. O art. 2º da Lei de Improbidade Administrativa (alterado pela lei 14230/2021) estabelece que:

Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei.

Como se pode notar, até mesmo aqueles que não recebem remuneração, mas são considerados agentes públicos, praticam atos de improbidade, como os mesários (que atuam em época de eleições).

Outro ponto interessante é que a lei equipara a agente público, aquela pessoa que não possui qualquer vínculo com o ente público, mas induziu ou concorreu dolosamente para a prática do ato de improbidade, conforme art. 3º da LIA (alterado pela Lei 14230/2021).

Ex: Fulano tem uma padaria e combina com Beltrano, que é servidor público, para fraudar um processo de compra (licitação) para que a empresa de Fulano seja contratada por um preço superfaturado (acima dos valores praticados no mercado).

Neste caso, Beltrano que é servidor praticou ato de improbidade e Fulano também, que não é servidor mas participou do ato.

Importante destacar neste ponto, que a Lei de Improbidade Administrativa em sua redação original previa também que, aquele que, não sendo agente público, mas que de forma direta ou indireta se beneficiasse do ato de improbidade, também estaria cometendo improbidade administrativa. Este trecho foi revogado pela Lei 14230/2021.

Conforme dispõe o parágrafo único do art. 2º da Nova Lei de Improbidade Administrativa: no que se refere a recursos de origem pública, sujeita-se às sanções previstas nesta Lei o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente.

Agentes Políticos na Lei de Improbidade Administrativa

Os agentes políticos (Governadores, Prefeitos etc) também estão sob a abrangência da Lei 8429/92. Com a nova redação do art. 2º da LIA, os agentes políticos foram contemplados de maneira explícita.

Na redação original, os agentes políticos estavam contemplados por conta da redação “praticados por qualquer agente público” que havia no art. 1º da lei.

Já houve bastante debate acerca da aplicação da LIA a determinados agentes políticos. A discussão se emaranhava em torno da ideia de que algumas condutas estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal também estariam previstas na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1079/50).

Tal discussão encontra-se pacificada. O STF firmou o seguinte entendimento[1]:

Os agentes políticos, com exceção do Presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa, quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade. Não há qualquer impedimento à concorrência de esferas de responsabilização distintas, de modo que carece de fundamento constitucional a tentativa de imunizar os agentes políticos das sanções da ação de improbidade administrativa, a pretexto de que estas seriam absorvidas pelo crime de responsabilidade. A única exceção ao duplo regime sancionatório em matéria de improbidade se refere aos atos praticados pelo Presidente da República, conforme previsão do art. 85, V, da Constituição.

Desta forma, os agentes políticos, a exceção do Presidente da República, também respondem por atos de improbidade administrativa, à luz da Lei 8429/92.

 

O que pode ser considerado ato de improbidade?

Antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 na LIA, era possível afirmar que, em regra, qualquer ato de corrupção frente ao ente público praticado por agente público ou alguém equiparado, poderia ser considerado ato de improbidade administrativa. Após as alterações, esta afirmação perdeu força. Explico:

Originariamente a LIA previa 3 espécies de atos de improbidade: atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito; atos de improbidade que causam prejuízo ao erário; e atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. Mais tarde, em 2016, foi inserido o art. 10-A à LIA (através da LC 157/2016), acrescentando mais uma espécie: atos de improbidade decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário.

Um ponto importante nestes tipos de improbidade, então definidos em lei, era a possibilidade de realização da conduta por via culposa.

Vamos a um exemplo: Caso um servidor de um determinado município brasileiro permitisse a utilização, em obra ou serviço particular, de uma máquina do ente público, causando prejuízo. Ele estaria cometendo ato de improbidade administrativa, ainda que tal prejuízo fosse causado de maneira culposa, ou seja, sem vontade específica de causar tal prejuízo.

Com a redação atual, estabelecida pela lei 14230/2021, o agente público apenas responderá pelo ato de improbidade se ficar comprovado o dolo, isto é, a deliberada vontade de causar prejuízo.

Veja o antes e o depois das condutas que caracterizam as diversas espécies de atos de improbidade:

Redação original:

Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:

Nova redação:

Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

Redação original:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Nova redação:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

Redação original:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

Nova redação:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

O art. 10-A foi revogado.

Como se denota, a inserção do dolo como elemento fundamental para caracterização do ato de improbidade foi a principal modificação entabulada pela Lei 14230/2021 nos artigos em destaque.

Outro ponto que podemos observar é que nos artigos 9º e 10, o rol de atos de improbidade administrativa continua sendo exemplificativo, enquanto o rol do art. 11 passa a ser um rol taxativo.

Assim, há a possibilidade da existência e processamento de outras condutas não previstas em lei, mas que configurem atos de improbidade administrativa que importem em enriquecimento ilícito ou lesão ao erário. Porém, com relação aos atos de improbidade administrativa que atentem contra os princípios, apenas se enquadram neste conceito as condutas estabelecidas na lei.

O DOLO passou a ser requisito essencial para caracterização do ato de improbidade administrativa?

 

Sim. A nova redação (promovida pela lei 14230/2021) estabelece a necessidade de configurar-se a atuação dolosa do agente para o seu enquadramento.

Tal constatação se torna mais evidente com a revogação do art. 5º da LIA, que assim determinava:

Art. 5° Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano.

Pela redação vigente, necessário se faz que a lesão ao patrimônio público se dê pela via dolosa. Nesta linha, o art. 17-C, §1º assim determina: A ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade.

Os parágrafos segundo e terceiro do novo art. 1º da LIA, estabelecem de maneira específica o alcance do conceito de dolo para determinação do ato de improbidade administrativa.

§2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

§3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

Em um ente público cujo gestor é desqualificado, do ponto de vista técnico, para exercício da função, eventuais erros ou omissões culposas que ocorram e que acarretem, por exemplo, enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, não poderão ser tipificados como improbidade administrativa.

O dolo enquanto elemento fundamental para caracterização da improbidade administrativa já vinha sendo discutido nas cortes de todo o país. O STF chegou a se manifestar, pouco tempo antes da sanção da Lei 14230/2021 acerca deste ponto.

A decisão se deu em medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6678[2], promovida pelo PSB – Partido Socialista Brasileiro. À época, o requerente questionava a constitucionalidade da penalidade de suspensão de direitos políticos, previstos na Lei 8429/92. Argumentava que não se coaduna com a Constituição Federal/88 a suspensão de direitos políticos para a condenação por qualquer ato de improbidade administrativa. Tal penalidade deveria ser aplicada apenas aos casos graves, onde o dolo estivesse presente.

Na decisão, o Ministro Gilmar Mendes decidiu, em sede de liminar, que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário; e suspendeu a vigência da expressão “suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos” com relação aos atos de improbidade que atentem contra os princípios da Administração.

Pouco mais de 20 dias após esta decisão, a Nova Lei de Improbidade Administrativa foi sancionada, permeando os pontos decididos pelo STF na referida ADI.

Quem possui legitimidade para propor a Ação de Improbidade Administrativa?

Pela redação original, o Ministério Público e a pessoa jurídica interessada (por ex. Município, Estado, etc) poderiam propor a ação principal de Improbidade Administrativa, com base na Lei 8429/92. Pela nova redação (promovida pela Lei 14230/2021), apenas o Ministério Público possui tal legitimidade.

Destarte, as ações promovidas por outros entes, que porventura estejam em andamento, mesmo que em fase de recurso, deverão observar a regra de transição estabelecida no art. 3º da Lei 14230/2021, abaixo transcrito:

Art. 3º No prazo de 1 (um) ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso.

Durante este prazo de 01 ano, o processo ficará suspenso. Não havendo manifestação do Ministério Público pelo prosseguimento da demanda, o processo será extinto sem resolução de mérito.

O dispositivo citado não obriga a intimação do Ministério Público para manifestar-se pelo prosseguimento do feito. Todavia, em virtude do que dispõe as normas fundamentais do CPC vigente, caberá ao juiz determinar sua intimação antes da extinção do feito, sob pena de violação ao princípio da vedação de surpresa nas decisões, conforme preceitua o art. 10 do CPC.

Salutar destacar que este dispositivo foi objeto de ADI[3] (Ação Direta de Inconstitucionalidade) promovida pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados E Do Distrito Federal – ANAPE. Em sede de liminar, o Min. Alexandre de Moraes concedeu interpretação conforme a Constituição Federal ao caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, no sentido da EXISTÊNCIA DE LEGITIMIDADE ATIVA CONCORRENTE ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS PESSOAS JURÍDICAS INTERESSADAS PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA;

A Lei vai retroagir para beneficiar agentes públicos condenados com base na redação da LIA, então vigente?

A resposta a esta questão não é tão simples.

Segundo determina o art. 5º, XXXVI da CF/88 a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Tal preceito é ratificado pelo DL 4657/42 (LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), mais especificamente em seu art. 6º, onde dispõe que a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

O citado dispositivo estabelece o chamado Princípio da IRRETROATIVIDADE. Significa que uma lei, ao entrar em vigor, deve ser aplicada aos fatos ocorridos dali para frente, e não a fatos passados.

A aplicação retroativa das leis como regra, faria surgir um cenário de completa instabilidade e insegurança jurídica. Possibilitaria, por exemplo, que situações já discutidas com base na lei vigente à época, fossem revistos. Daí a essência dessa irretroatividade normativa.

Nas palavras de NADER (2016, pág. 197): A irretroatividade é princípio que veda a aplicação da lei nova sobre fatos anteriores à sua vigência. É princípio fundamental de segurança jurídica (…)

Noutro norte, nosso ordenamento também consagra o chamado Princípio da retroatividade da norma mais benéfica. Sua base constitucional está disposta no art. 5º, XL da CF/88 com a seguinte dicção: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

Este dispositivo aplicável às sanções penais também é aplicável no campo da improbidade administrativa, por força do que determina o art. 1º, §4º da Lei 8429/92, senão vejamos: (…) § 4º – Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Com relação a este tema, Osório (2006, p. 334):

Não há dúvidas de que, na órbita penal, vige, em sua plenitude, o princípio da retroatividade da norma benéfica ou descriminalizante, em homenagem a garantias constitucionais expressas e a uma razoável e racional política jurídica de proteger valores socialmente relevantes, como a estabilidade institucional e a segurança jurídica das relações punitivas. Se esta é a política do Direito Penal, não haverá de ser outra a orientação do Direito Punitivo em geral, notadamente do Direito Administrativo Sancionado, dentro do devido processo legal.

Não obstante o que determina o dispositivo em referência, ainda há uma celeuma em torno da retroatividade dos novos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa.

O Ministério Público Federal, através da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção, publicou a orientação 12/5ª CCR[4], onde estabelece diretrizes sobre a Nova Lei de Improbidade Administrativa.

No documento, a orientação ministerial é pela irretroatividade da nova redação dada aos arts. 9º, 10 e 11, e justifica tal entendimento sob o argumento de que poderia haver retrocesso no sistema de improbidade:

Não se aplicam os novos dispositivos dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA alterados pela Lei 14.230/2021 a atos de improbidade ocorridos anteriormente ao início de sua vigência, pois, sendo as regras originais parâmetros de garantia e efetividade da probidade, as novas condutas típicas, se retroagirem, promoverão retrocesso no sistema de improbidade, cujas bases são constitucionais (artigo 37 – §4º), atentando também contra os compromissos assumidos pelo Brasil nas Convenções Internacionais contra a Corrupção (OCDE, OEA e ONU), internalizadas como normas supralegais.

O Ministério Público de vários estados também já se manifestou no mesmo sentido que o MPF, pela irretroatividade dos novos dispositivos que beneficiem de alguma forma aqueles agentes que cometeram ato de improbidade.

A aplicação retroativa da norma mais benéfica não é tema novo nos tribunais pátrios. Mesmo antes da promulgação da lei que alterou substancialmente a LIA, este debate já existia em outros campos do direito administrativo:

Mandado de segurança – Infração de trânsito – Aplicação – Poder-dever – Decadência- Processo administrativo – Interrupção – Direito administrativo sancionador – Direito penal – Proximidade – Garantias – Retroatividade da lei mais benéfica.
A possibilidade da administração sancionar o particular por infração cometida à legislação de trânsito deve observar o prazo de cinco anos a contar da data em que praticado o ato, sendo o transcurso temporal interrompido pela instauração do processo administrativo que deve preceder o ato sancionatório.

A despeito da divergência existente, vem prevalecendo na doutrina e na jurisprudência a posição de que o grau de proximidade existente entre o direito administrativosancionador e o direito penal autoriza seja estendida àquele todas as garantias inerentes a este último, dentre as quais a retroatividadeda lei mais benigna prevista no art. 5º, XL, da Constituição da República. (Ap Cível/Reex Necessário 1280424-02.2012.8.13.0024. Relator Des. Marcelo Rodrigues. DJe 11/08/2015).

Em seu voto, o desembargador relator ressaltou o posicionamento do STJ (Superior Tribunal de Justiça) acerca do caso, citando julgado daquela corte:

No entanto, vem prevalecendo no âmbito do STJ a perspectiva daqueles que vislumbram maior similitude entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, devendo as garantias inerentes àquele, tal qual a retroatividade da lei penal mais benigna em favor do réu, prevista no art. 5º, XL, da Constituição da República, ser inteiramente aplicadas a este.
Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. I. O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente. II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Recurso especial parcialmente provido”. (REsp 1153083 / MT. RECURSO ESPECIAL. 2009/0159636-0. Relatora p/ acórdão: Ministra REGINA HELENA COSTA (1157). DJe 19.11.2014).

Asseverando ainda, trecho do voto da Ministra Regina Helena Costa, relatora do processo que destacou:

Em meu entender, a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal.
Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.

Como se denota, apesar do posicionamento em contrário do Ministério Público, os argumentos favoráveis à aplicação do Princípio da retroatividade da lei mais benéfica são mais robustos e vêm sendo corroborados pelos tribunais.

O que se demonstra, pela análise desses julgados é que tal interpretação não foi construída a partir das alterações feitas na Lei de Improbidade Administrativa, pelo contrário, a retroatividade da lei mais benéfica vem sendo aplicado no âmbito do direito administrativo sancionado há vários anos.

Não havendo, portanto, justificativa plausível a fundamentar uma mudança no entendimento ao tratar-se sobre os atos de improbidade administrativa.

É fato que a aplicação desse princípio levará ao arquivamento ou a improcedência de milhares de processos Brasil afora. Como exemplo, podemos citar: processos cujos fatos não se enquadrem na condição de conduta dolosa; processos relacionados a atos de improbidade administrativa que atentem contra os princípios, mas que não se encontram tipicamente descritos no art. 11 da LIA; processos em que tenha se operado a prescrição.

Como bem explicitado pela norma orientadora do Ministério Público, tal conclusão não se amolda aos preceitos de combate à corrupção. Entretanto, do ponto de vista estritamente jurídico, esta é a solução mais justa.

Apesar dessas alterações ainda serem recentes, alguns Tribunais já tiveram oportunidade de se manifestarem sobre o tema, como TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) e TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo):

Tribunal de Justiça de São Paulo: APELAÇÃO CÍVEL. Ação civil pública. Pretensão direcionada a ex-prefeito do Município de Nipoã. 1.Improbidade administrativa. Gastos excessivos com combustível nos exercícios de 2014 e 2015 e falhas nas licitações realizadas para a aquisição do produto no referido período. Sentença de parcial procedência. (…) 7. Superveniência da Lei n. 14.230/2021 que, em seu artigo 1º, §4º estabelece ao sistema de improbidade a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador. Retroatividade da norma mais benéfica, por disposição específica da mesma (art. 1.º §4.º). Supressão das modalidades culposas. Atos de improbidade administrativa somente dolosos, não verificados na espécie. Ausência de má-fé no trato com o dinheiro público ou obtenção de vantagem. Negligência durante a gestão. 8. Sentença reformada. Decreto de improcedência da ação. Recurso provido. (Ap Cível 1001594-31.2019.8.26.0369. Relator Des. Oswaldo Luiz Palu. DJe 10/11/2021). (grifo nosso)

Tribunal de Justiça de Minas Gerais: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – DOAÇÃO DE IMÓVEIS – FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL – REQUISITOS LEGAIS – INOBSERVÂNCIA – IMPROBIDADE – INOCORRÊNCIA – ELEMENTO SUBJETIVO – DOLO – AUSÊNCIA.

Trecho do voto do relator: Inicialmente, cabe considerar que embora a ação tenha sido ajuizada antes das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 na Lei nº 8.429/92, as normas de conteúdo processual têm aplicação imediata ao processo, de forma não retroativa, e em relação às normas sancionadoras, é cabível a sua aplicação retroativa para beneficiar o requerido.
A retroatividade da lei mais benéfica em favor do agente constitui princípio fundamental do direito sancionador, conforme art. 5º, inciso XL, da CR/88
(…) (Ap Cível  0116426-94.2015.8.13.0693. Relator Des. Renato Dresch. DJe 17/12/2021). (grifo nosso)

Pelos acórdãos acima referendados há uma tendência pelo reconhecimento da retroatividade da lei mais benéfica nos casos relacionados à Lei de Improbidade Administrativo, o que, ao meu ver, corrobora o entendimento até então sedimentado.

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[1] http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=315062116&ext=.pdf

[2] http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348112399&ext=.pdf

[3] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15349715946&ext=.pdf

[4] Disponível em http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/PGR00413785.2021Orientao12.20215CCRLIA.pdf – acesso em 20/01/2022